Já eram passados alguns dias de quando o cantor Bruno Camurati havia, poeticamente, deixado claro aos que o seguem e acompanham que ele é gay, quando conversamos. Em 2022, essa notícia deveria provocar choque em zero pessoas, mas as coisas ainda não são assim. No caso de Bruno, mais: ele é cantor do segmento religioso, católico. Como há nuances e diferenças que vão além da religião e sempre houve incômodo entre católicos de serem chamados de cantores gospel, então a música católica será assim tratada nesta reportagem.
O que, a princípio, não provocou um frisson muito grande, acabou se potencializando em alguns dias: outro cantor católico, Gil Monteiro, também assumiu ser gay. O Halleluya, um festival de música católica conduzido pela Comunidade Shalom (falemos mais sobre comunidades no próximo parágrafo) em Fortaleza (CE), cancelou a apresentação que Bruno faria em alguns dias. O padre Júlio Lancelotti, adepto de uma corrente que pretende tornar a Igreja mais focada no social, repostou o post em que Bruno anunciava o cancelamento.
E, assim, muita gente que sequer o conhecia, passou a promover um imenso movimento de acolhida. Se ser gay no Brasil de 2022 ainda é muito difícil, ser gay, cantor, católico, é se perceber diante de bandeiras e barreiras, aparentemente, intransponíveis.
A música católica teve um verdadeiro boom na virada do milênio. Passou a constituir um mercado, impulsionada por dois fatores: o movimento pentecostalista Renovação Carismática Católica (RCC) e as Novas Comunidades Católicas, de leigos. Leigo é como a Igreja se refere a todos os que não são ordenados (padres, freiras, bispos, diáconos). A RCC surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970 e espalhou-se pela América Latina com a fúria de quem precisava domar o espaço que estava sendo ocupado pela Teologia da Libertação (TL), do líder religioso Leonardo Boff – movimento que, ao contrário do que propõe a RCC, prega uma Igreja mais social (e tem, portanto, como adepto, o padre Julio, entre outros). Seu auge foi na primeira década dos anos 2000, e essa dinâmica também tinha um componente político muito forte, já que a TL tem viés de esquerda e a RCC, de direita.
As Novas Comunidades Católicas surgiram na mesma toada da RCC, mas com uma pegada meio “padre e freira”: são locais em que leigos passam a viver (como os sacerdotes, mas não precisam fazer a ordenação), podendo constituir famílias que permanecerão morando todas juntas e vivendo do que chamam de “seus carismas”: a Canção Nova, que é a maior de todas e sede em Cachoeira Paulista (SP) tem o “carisma” da “evangelização pelos meios de comunicação” (por isso detém emissoras de rádio, tv e portal de internet); a Shalom tem sede em Fortaleza (CE) e o “carisma” da “evangelização pela arte”, e por aí vai. Por isso, o Halleluya, de Fortaleza, é um evento conduzido pela Shalom e com tanto prestígio no meio católico.
Ao fomentar a música – já que fazer músicas emocionantes é parte das estratégias da RCC para conseguir adeptos – e com o boom do surgimento de artistas, formou-se um mercado amplo, constituído por eventos de grande porte – o Hallel de Brasília (DF) chegou a reunir 420 mil fieis em 2003, só para se ter uma ideia – e gravadoras como Paulinas, Codimuc e a própria Canção Nova. E a capilaridade da RCC é tão ampla quanto a da própria Igreja, tendo como pontos de concentração de fieis os “grupos de oração” e uma agenda de eventos sempre cheia.
Em paralelo, porém, outros movimentos religiosos dentro da Igreja, além de grupos de música independentes, surgiram. Caso da Banda Dom, do Rio de Janeiro, onde vive Bruno Camurati – que nunca foi “carismático” (como se chamam os frequentadores da RCC) e sim de trabalhos paroquiais numa igreja do Regnum Cristi (movimento da congregação Legionários de Cristo, fundada em 1941, na Cidade do México).
Bruno abriu a sexualidade de forma bastante singela, num post em seu Instagram, com uma poesia e a hashtag #pride, que significa “orgulho”, no Dia do Orgulho.
“Desde que decidi gravar o primeiro CD, eu já sabia que isso em algum momento seria um assunto e sabia que isso poderia acontecer, porque o entendimento em relação à sexualidade é mais antigo. Sabia que poderia vir à tona como fofoca ou que eu mesmo ia querer falar. Sempre estive preparado para o assunto. Quem é gay sempre acaba refletindo sobre a própria existência, sobre o nosso papel, e quando você junta isso com a questão religiosa, há todo um processo: da culpa, da negação, da tentativa de não ser e tentar corrigir de alguma forma”.
Lidar com a culpa católica não é tarefa das mais fáceis, vez que a religião ainda compreende a homossexualidade como pecado grave e passível de condenação ao inferno (o que, segundo entende a Igreja, significa condição eterna e irreversível).
“Quando entendi que Deus me amava desse jeito, que é uma coisa que não é ruim e eu poderia ser assim, foi muito tempo atrás. Quando comecei a cantar, decidi não falar sobre isso diretamente, sabia como as pessoas da Igreja fariam sensacionalismo e atrapalharia o foco, que é a divulgação das músicas. Então eu decidi que trataria dos temas que acho importantes através da minha arte. Comecei gravando músicas em que falava sobre a misericórdia de Deus, como “Acesso Negado”, sobre hipocrisia também, e quis fazer isso em vários CDs e nas músicas eu tratei disso. E muita gente se identifica com meu trabalho por ser mais pessoal, mais crítico e mais artístico”,
lembra.
A carreira solo, depois de um início na banda “Em Nome do Pai”, com um integrante que se tornaria ilustre no Rio por outro viés – o fato de ter se tornado governador do Estado, Cláudio Castro – teve início em 2010.
“Precisei de um tempo e amadurecer a carreira para falar sobre isso. Desde a pandemia eu venho tratando do assunto sexualidade, racismo e outras pautas que acho importantes, e acaba que meu público já acompanhava meu entendimento. Aconteceu de outro cantor católico sair do armário, o Gil Monteiro, e ele tem um trabalho mais voltado à Renovação Carismática, mais oracional, falou sobre comungar, o que ele pensava a respeito. E acabou que, quando ele se assumiu, isso virou um assunto um pouco maior”.
A comunhão, para o católico, é o ato de consumir o corpo de Cristo literalmente falando. Isso significa que, dentro do ritual religioso, acredita-se que ocorre o fenômeno da transusbtanciação – quando a hóstia, ao ser consagrada, transforma-se em corpo de Cristo, deixando de ser mera representação do próprio (os evangélicos tradicionais que seguem ritos parecidos acreditam na consubstanciação, no qual o pão, aí sim, é uma representação). Um dos quesitos para comungar é estar com o sacramento da Confissão “em dia” – ou seja, contar os “pecados” cometidos a um padre e, dele, receber o perdão de Deus. Isso tornaria, em tese, o corpo humano, “puro” para receber o corpo de Cristo.
Na fofoca católica, passou-se a dizer que Gil e Bruno seriam um casal, o que não faz o menor sentido.
“Sempre foi muito alternativo porque é um estilo mais MPB, mais próximo do jazz e com letras que falam mais sobre questões pessoais do que oracionais, e o público, apesar de ser mais alternativo (o meu som), passou a receber super bem, até mesmo dentro das comunidades da RCC. Não é uma música de louvor e adoração, mas os artistas sempre me respeitaram muito dentro desse cenário”.
É neste cenário que Bruno revela como alternativo onde estão artistas como a Banda Dom (já citada, e que gravou composições de Bruno antes mesmo dele empreender a carreira solo), Ziza Fernandes (cuja aparição de maior projeção foi quando executou a canção “Peregrino Incansável” para o Papa Francisco, na Jornada Mundial da Juventude, em 2013) e o Padre Fábio de Melo. Vários artistas católicos, hoje, são gravados e licenciados pelas maiores gravadoras do país, como a Som Livre.
“Essas pessoas que estão revoltadas hoje vem de outro lugar que não é nem meu público natural, são pessoas que se revoltam pela sexualidade e é uma revolta generalizada. Quem me conhece compreende melhor a minha postura”,
reflete Bruno, sobre as repercussões.
Agora, o artista crê que haverá uma redução do interesse de católicos mais pendidos à RCC pelo seu som, ao passo em que mais gente passará a conhecê-lo, para além das fronteiras da religião.
“Inclusive, nem gosto muito desse rótulo de ‘música católica’, eu acho que as pessoas é que são católicas e a música é a música, se a gente quer falar de Deus, acaba transbordando nas músicas, mas sempre quis atingir vários públicos e ajudar as pessoas que estão dentro da religião a se conhecerem melhor, olhar mais para dentro de si, e ter um olhar mais crítico”,
diz.
Apesar disso, a própria conversa com Bruno levou alguns dias para começar. Com uma repercussão muito maior do que ele imaginava, viu suas mensagens diretas do Instagram e seu Whatsapp totalmente lotados por dias. Não queria “lacrar”, nem causar tumulto, embora soubesse que, sendo pessoa pública no segmento, dificilmente não haveria algo do tipo. Combinamos, então, de seguir essa tônica por toda a conversa.
E aqui temos um artista, carioca, 41 anos, 22 deles dedicados à música feita no catolicismo, católico, gay, com uma deficiência auditiva que parece apenas ter tornado melhor sua capacidade de produzir música. Que, pelo sobrenome, revela parentesco distante com a cineasta Carla Camurati, diretora de “Carlota Joaquina”, tido como primeiro filme da “retomada do cinema nacional”.
Quanto ao Halleluya, que será no dia 23, depois de 10 anos tocando no Festival, será a primeira vez sem Bruno Camurati no palco. Perde o evento. E quem considerar que é guardião de uma moral e fé religiosa superior, que atire a primeira pedra.